"No que diz respeito ao critério material, desde os primórdios de sua
existência, a atividade de praticagem consiste em assessoria (utilidade), prestada a
todas as embarcações que necessitem acessar águas abrigadas e portos. Sua
utilidade é justificada pela necessidade de minimizar os riscos de danos materiais e
humanos envolvidos na passagem de grandes embarcações por áreas restritas, que
possam oferecer obstáculos traiçoeiros dos quais a tripulação, por não estar
familiarizada,301 não tenha capacidade de se desvencilhar. A praticagem, que durante
boa parte de sua evolução histórica não era sequer obrigatória na maioria das
nações, mesmo representando um custo financeiro complementar, raramente era
dispensada pelos comandantes que a viam como um alento e um bom investimento,
em vista dos possíveis custos que um acidente, por menor que fosse, poderia gerar.
Esta discricionariedade na contratação dos serviços de praticagem evidenciava a noção de que havia um único beneficiário, representado pela figura do
proprietário da embarcação ou de seu responsável (comandante ou armador). O
serviço destinava-se, desta forma, a proteger o patrimônio privado, representado
pela carga transportada, pela embarcação, e também, ainda que secundariamente,
pela segurança e preservação das vidas dos tripulantes ou passageiros
transportados.302 Entretanto, mesmo em épocas remotas, onde imperava esta noção
“egoística” a respeito da segurança naval, já havia uma preocupação do Estado em
disponibilizar o serviço de forma regular e contínua, ciente de sua indispensabilidade
301 A questão da familiaridade é relativa, porém, é senso comum entre os habituados à navegação,
que as condições em áreas costeiras e, notadamente, em estuários de rios, onde localizam-se
grande parte dos portos brasileiros, são afetadas por um grande dinamismo geográfico em
virtude, principalmente, das condições climáticas. Sendo assim, em questão de dias, ou mesmo
de poucas horas, a depender de eventos atmosféricos, as condições de um determinado porto
podem variar radicalmente tornando, o monitoramento constante e o conhecimento prospectivo
a respeito dos efeitos destes eventos, a única maneira realmente eficaz de se evitar surpresas.
No Brasil, desde a criação da Comissão Nacional Para Assuntos de Praticagem, pelo Decreto
7.860/2012, pairam diversos “boatos” sobre as intenções de mudanças que o Governo Federal
Pretenderia implementar com relação aos serviços de praticagem. Um destes boatos diz
respeito à possibilidade de comandantes “habituados” a atracar em determinados portos,
dispensarem o serviço de praticagem, o que vai de encontro à questão da familiaridade,
supracitada, uma vez que não há como estabelecer parâmetros seguros sobre o que poderia ser
determinado como uma “habitualidade” capaz de gerar segurança numa manobra de
aproximação e atracação.
302 Vale dizer que, mesmo em tempos onde a praticagem não era obrigatória, era praxe das
seguradoras marítimas, cuja existência é praticamente tão antiga quanto a da própria
navegação, recusarem-se a indenizar os acidentes que tivessem ocorrido em águas abrigadas,
sem a presença de um prático a bordo, por interpretarem o fato como uma omissão ou
imprudência do responsável pela embarcação, que teria dado causa ao dano. Tal exigência, via
de regra, era formalizada nos contratos de seguro marítimo.
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para a movimentação portuária e de seu consequente valor para a dinâmica da
economia. A precoce regulamentação do setor no Brasil que, conforme evidenciado
no item 2 do capítulo I deste trabalho,303 ocorreu apenas 6 meses após a chegada da
corte portuguesa, e da consequente abertura dos portos, evidencia a ciência, por
parte dos governantes, da imprescindibilidade da disponibilização dos serviços aos
navegantes que precisavam acessar os portos nacionais e o reflexo da satisfação
desta necessidade para a dinamização da economia.
Na quadra final do século XX, a consolidação da consciência a respeito da
necessidade de preservação ambiental, aliada à ocorrência de tragédias ambientais
relacionadas à flexibilização do rigor imposto às atividades portuárias, deflagrou um
incremento da percepção governamental com relação à instrumentalidade dos
serviços de praticagem para a preservação ambiental, uma vez que, em virtude dos
expressivos volumes de combustível (próprio e transportado como carga) e outros
produtos potencialmente lesivos, como fertilizantes, transportados pelas
embarcações, acidentes ocorridos em manobras de entrada ou saída de portos
poderiam causar danos expressivos ao meio ambiente.304
Outro fator que influenciou um recrudescimento governamental, no sentido
de tornar a contratação dos serviços compulsória deriva da intensificação das
movimentações portuárias e incremento do tamanho das embarcações. Muitos
303 Daí o elevado grau de detalhamento que se pretendeu conferir à evolução da prestação dos
serviços de praticagem no Brasil, exposta no item 2 do capítulo I deste trabalho, ao qual, de
antemão, remete-se o leitor, sempre que necessário elucidar aspectos históricos tratados de
forma sintética neste capítulo.
304 O derramamento de petróleo provocado pelo navio Exxon Valdez em março de 1989, em área
próxima ao Alaska, é tido como uma das maiores tragédias ambientais da humanidade e
especula-se que o acidente tenha ocorrido devido a uma flexibilização das regras de praticagem
locais, visando a economia das empresas de transporte marítimo. Ocorre que, a fim de reduzir o
número de horas que o prático permaneceria embarcado nos navios, tanto para a entrada no
porto de Valdez, Alaska, quanto para a saída, gerando uma consequente redução dos
emolumentos devidos, a área de “praticagem obrigatória” foi delimitada muito aquém do que o
realmente necessário. O acidente do Exxon Valdez ocorreu durante uma manobra de saída do
porto, quando o navio já se encontrava fora da área de praticagem obrigatória e, portanto, o
Prático responsável já havia abandonado o navio e retornado ao continente. A tripulação,
subestimando a geografia traiçoeira e as correntes locais, navegava em velocidade acima do
limite recomendado para a área e falhou em, após visualizar um farol que servia de parâmetro
para correção de rumo, tomar as providências com a celeridade necessária, fazendo com que o
navio atingisse uma área re corais, provocando danos ao casco e consequente vazamento do
petróleo. Após o acidente, a área de praticagem obrigatória local foi ostensivamente ampliada e,
em toda a América do Norte, as regras de praticagem foram recrudescidas. Para mais
informações sobre os acidente e as providências posteriores: USA. The National Response
Team. The Exxon Valdez Oil Spill – A Reporto to the President. Disponível em:
. Acesso em
10/07/2015. Também: Exxon Valdez Oil Spill Trustee Councill. Spill Prevention and Response.
Disponível em: http://www.evostc.state.ak.us/index.cfm?FA=facts.response. Acesso em
10/07/2015.
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portos tornaram-se progressivamente mais movimentados, atingindo níveis em que,
mesmo com a totalidade de sua estrutura funcionando em tempo integral, é
inevitável a formação de filas de espera para a carga e descarga de mercadorias.
Em virtude deste dinamismo, um acidente, além das consequências humanas,
patrimoniais e ambientais supracitadas, pode provocar consequências nefastas para
a economia do Estado, uma vez que a interdição de um canal de acesso ou de um
trecho do porto, ainda que por algumas horas, ou alguns dias (o que é mais comum),
tende a desestabilizar, senão paralisar completamente as atividades, provocando um
caos logístico com nefastos efeitos econômicos.
Com base no exposto acima, é possível afirmar que o serviço de praticagem
se presta à satisfação de um amplo rol de necessidades individuais, mas também
gerais, coletivas e públicas, na medida em que resguarda: a) o patrimônio pessoal
do proprietário da embarcação e da carga transportada; b) as vidas humanas de
tripulantes e passageiros;305 c) o meio ambiente, que pode ser profundamente
afetado por acidentes que provoquem o vazamento de produtos tóxicos e d) a
economia estatal, uma vez que acidentes tendem a inviabilizar setores portuários
inteiros e vias de acesso, provocando prejuízos astronômicos em decorrência da
desestabilização logística portuária.
A análise das premissas supracitadas, em cotejo com as noções teóricas a
respeito do instituto jurídico dos serviços públicos permite, admitindo-se, por
hipótese, o enquadramento do serviço de praticagem como tal, afirmar que seriam
serviços públicos econômicos e, simultaneamente, singulares (uti singuli) e coletivos
(uti universi), uma vez que se destinam a satisfazer as necessidades tanto dos
tomadores diretos, representados pelos responsáveis pela embarcação, quanto da
sociedade como um todo, na medida em que todos se beneficiam da proteção
305 Não se pode olvidar que todos os grandes navios de cruzeiro, assim como os cargueiros, em
geral, são obrigados a contratar o prático para assessorar o comandante nas manobras de
aproximação, atracação, desatracação e afastamento. O recente e emblemático caso Costa
Concórdia bem ilustra os riscos que a navegação imprudente podem trazer para a vida humana.
O acidente, que foi causado, provavelmente por uma sequência de pequenos erros operacionais
no cálculo da rota da embarcação, ocorreu numa área onde, apesar de obstáculos traiçoeiros, a
praticagem não é obrigatória, fazendo com que a imperícia da tripulação para lidar com as
peculiaridades locais, aliada à economia equivalente a menos que o valor de uma lata de
refrigerante por passageiro, custasse 32 vidas, e poderia ter custado muitíssimas mais, não
fosse a atitude do Comandante que, atenuando os resultados de seu erro, tomou a prudente
medida de, percebendo a gravidade da colisão, manobrar para posicionar a embarcação sobre o
leito de rochas submersas sobre o qual havia colidido, evitando assim que o navio afundasse por
completo o que, certamente, provocaria um número muito maior de óbitos. PIMENTA,
matusalém Gonçalves. Processo Marítimo – Formalidades e Tramitação. 2. ed. Barueri:
Manole, 2013. p. 112-122.
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ambiental e da estabilização econômica para as quais a prestação dos serviços
contribui.
Outra linha de raciocínio, entretanto, poderia levar à conclusão de que, no
que diz respeito ao aspecto material, hora analisado, o que, no parágrafo anterior foi
chamado de serviço público coletivo (uti universi) seria, na verdade, uma função
pública, destinada à preservação do próprio Estado e não à satisfação de
necessidades concretas de seus habitantes.306
Independentemente da classificação como serviço público ou função pública
sugerida pela análise do serviço de praticagem perante o critério material,
especificamente no que diz respeito aos bens jurídicos protegidos e necessidades
atendidas, há, na NORMAM-12, dispositivo que revela, ainda que de forma reflexa, a
noção da imprescindibilidade da praticagem para a salvaguarda do nobilíssimo rol
de bens jurídicos cujo Estado, através da figura do prático, se destina a resguardar.
Trata-se da alínea “m” do item 0228, que determina que: “Compete ao Prático, no
exercício de suas funções (…) Executar as atividades do Serviço de Praticagem,
mesmo quando em divergência com a empresa de navegação ou seu representante
legal, devendo os questionamentos serem debatidos nos foros competentes, sem
qualquer prejuízo para a continuidade do Serviço (grifou-se)”.
O dispositivo supracitado revela que a função exercida pelo profissional, em
virtude do seu mérito na proteção de valores indisponíveis, supera a noção de
simples atividade econômica negocial, uma vez que sua liberdade de negociação é
amplamente restringida. Se há amplo debate nos tribunais nacionais a respeito da
possibilidade de supressão de serviços considerados públicos, em virtude do não
pagamento de suas respectivas taxas, a aplicabilidade do princípio da continuidade
ao serviço de praticagem parece operar de forma muito mais rígida que em muitos
dos serviços pacificamente considerados como públicos, uma vez que a norma
positivada determina a impossibilidade de recusa da prestação por falta de ajuste
entre as partes, relegando o debate acerca dos aspectos mercantis para segundo
plano.307
306 A respeito da diferença entre as chamadas funções públicas (ou funções de Estado) e os
serviços públicos, Dinorá Adelaide Musetti Grotti explica que: “Embora haja entre a função e o
serviço público uma nota comum característica – a atividade -, não se pode identificar ou
assimilar essas duas importantes categorias jurídicas. Mas a função pública e o serviço público
atuam em distintos âmbitos, e nem sempre com iguais destinatários. A noção de função pública
é, em seu conteúdo objetivo, mais ampla e geral que a de serviço público”. GROTTI, Dinorá
Adelaide Musetti. O serviço público....Op. Cit.. p. 110-111.
307 Evidentemente, a disposição normativa a respeito da impossibilidade de recusa da prestação
111
Em resumo, a análise quanto aos bens jurídicos diretamente resguardados
pelo serviço de praticagem parece demonstrar, ao menos no que diz respeito ao
aspecto material, a possibilidade de enquadrá-lo como serviço público. Entretanto,
cabe analisar os demais critérios a fim de verificar se permitem conclusões similares
às atingidas através deste raciocínio preliminar."
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